Consumo de carne de animais selvagens é ameaça para espécies

A caça para obter presas, chifres ou outras partes do corpo é uma ameaça bem conhecida para a vida selvagem da África, mas o impacto da caça à carne selvagem pode representar uma ameaça maior. Os conservacionistas da África Austral, a região mais ao sul do continente, estão explorando novas maneiras de conter isso.

“A carne de animais selvagens é um problema significativo em Zâmbia. Para nós, é de longe a maior ameaça às nossas populações de vida selvagem”, disse ao Mongabay Luwi Nguluka, gerente de programas de conscientização da Prevenção de Crimes de Vida Selvagem (WCP na sigla em inglês).

A ONG zambiana tem trabalhado com o Departamento de Parques Nacionais e Vida Selvagem (DNPW na sigla em inglês) do país para fazer campanha contra a oferta e demanda no comércio de carne de animais selvagens.

Nguluka diz que o consumo urbano de carne de animais selvagens em Zâmbia está aumentando à medida que as populações crescem e a riqueza aumenta. Ao mesmo tempo, as populações de animais selvagens da Zâmbia estão diminuindo, tornando a carne de animais selvagem mais difícil de encontrar e aumentando o preço. Com o aumento do preço vem o prestígio, adicionando mais um impulsionador à demanda pela carne em Lusaka, a capital.

É um padrão que outros pesquisadores estão observando em outro lugar. Peter Lindsey, diretor de iniciativas de conservação da Rede de Conservação da Vida Selvagem (WCN na sigla em inglês), conduziu uma extensa pesquisa sobre a caça à carne de animais selvagens. Quando ele entrevistou gestores de áreas protegidas, funcionários de ONGs e representantes da indústria do turismo sobre o impacto da caça à carne de animais selvagens em 11 países africanos, os entrevistados classificaram como a ameaça mais grave à vida selvagem em áreas protegidas, ao lado da caça de partes do corpo, como chifre de rinoceronte.

Apesar disso, a caça à carne de animais selvagens não angaria a atenção dedicada a questões de conservação mais conhecidas, como o comércio de marfim, chifre de rinoceronte ou desmatamento.

“Só agora estamos começando a perceber que esta crise pode se estender a grande parte do continente africano”, disse Julia van Velden, doutoranda na Universidade Griffith, em Brisbane, que estuda a questão da carne de caça em Malaui.

Embora os gestores do parque e outros entrevistados tenham identificado a caça à carne de animais selvagens como uma das principais ameaças à vida selvagem, não há pesquisas suficientes para definir com precisão seu impacto. Um indicador preocupante são os muitos casos de ecossistemas saudáveis em que as populações de mamíferos de grande porte estão bem abaixo do número esperado. Um exemplo é a Zâmbia, onde as populações de grandes mamíferos em parques nacionais estão 74% abaixo de sua capacidade máxima de carga, o que os pesquisadores acreditam ser em grande parte resultado da caça ilegal.

Na África Ocidental e Central, onde a caça e o comércio de muitos tipos de vida selvagem são legais ou semilegais, os pesquisadores tentam extrapolar o quanto de caça ocorre por meio de visitas aos mercados de carne de animais selvagens, embora a natureza informal do comércio e a inacessibilidade de algumas áreas façam disso um desafio. As estimativas para a Bacia do Congo variam de 1 milhão a 4 milhões de toneladas de carne de animais selvagens consumida todos os anos, com ambos os números considerados subestimados por seus autores. Mas mesmo com alguma compreensão do consumo, a complexidade de estudar os ecossistemas florestais torna difícil dizer com certeza exatamente qual é o impacto da caça à carne de animais selvagens.

O desafio se torna maior em países onde a carne de caça é estritamente ilegal. Muitas vezes, os caçadores e consumidores relutam em divulgar suas atividades, tornando difícil para os pesquisadores entender quem está caçando o quê e por quê.

A dinâmica social e econômica do comércio da carne de caça varia de um lugar para outro, então as descobertas em uma região não são necessariamente aplicáveis em outra. Em muitos países africanos, atualmente há pouca ou nenhuma pesquisa sobre o comércio de carne de animais selvagens, e o alto custo da pesquisa necessária está frequentemente além dos meios das já escassas autoridades do parque.

“Sem estudos locais, é impossível gerenciar esse problema, já que você simplesmente não pode dizer que os mesmos motivadores dessas atividades se aplicam”, disse van Velden.

Enfrentando o abastecimento

Para as comunidades que vivem ao lado da vida selvagem, a carne de animais selvagens pode ser um componente importante de sua dieta. Um estudo que rastreou a disponibilidade de peixes em comparação com a caça de carne de animais selvagens em reservas naturais em Gana ao longo de 30 anos descobriu que a caça aumentou drasticamente nos anos em que a oferta de peixe era baixa, sugerindo uma ligação importante entre a carne de animais selvagens e a segurança alimentar.

Em Madagascar, onde o comércio de carne de animais selvagens é relativamente limitado, a caça oferece uma fonte acessível de proteína animal para as comunidades rurais. Em uma pesquisa realizada no leste de Madagascar, 95% dos entrevistados disseram ter comido pelo menos uma espécie protegida. Mas a maioria mostrou preferência por carne de animais domésticos, sugerindo que a caça à carne de animais selvagens poderia ser bastante reduzida se fontes alternativas de proteína animal fossem acessíveis e disponíveis.

Enquanto alguns caçadores em outras partes do continente ainda caçam apenas para fornecer comida para suas famílias, em muitos lugares a caça à vida selvagem tem um aspecto mais comercial.

“É muito raro ser puramente para subsistência”, disse Lindsey ao Mongabay. “Em alguns casos, os caras vão caçar um pouco de carne para suas famílias, mas muitas vezes nesse tipo de arranjo, eles também vendem um pouco da carne.”

Um estudo sobre a caça de carne de animais selvagem no Delta do Okavango descobriu que as famílias que caçavam normalmente tinham mais riqueza e outras alternativas do que aquelas que não tinham esse hábito, sugerindo que os caçadores eram motivados pelo dinheiro e não pela necessidade. Um estudo não publicado sobre a caça ilegal de carne de animais selvagens ao redor do Parque Nacional Kafue, na Zâmbia, descobriu que praticamente todos os caçadores eram economicamente motivados, vendendo 90% de sua carne e mantendo 10% para seu próprio consumo.

As comunidades que vivem adjacentes aos parques nacionais na África são frequentemente algumas das mais carentes economicamente, prejudicadas pela falta de infraestrutura e com opções econômicas já limitadas, muitas vezes exacerbadas por medidas de conservação restritivas. O apelo da caça é fácil de ver para os caçadores da Zâmbia, quando cada um pode ganhar uma renda média de $ 48 por mês em uma área onde a renda familiar média é de apenas $ 15 por mês.

“Na maior parte da África, os mecanismos para beneficiar as comunidades de vida selvagem não estão realmente lá”, disse Lindsey, “então eles levam o único benefício que está disponível para eles, que é caçar para a panela ou caçar para vender”.

Lindsey diz que encontrar maneiras de as comunidades locais se beneficiarem da vida selvagem é crucial para reduzir a caça. Uma solução seria dar às comunidades locais a propriedade sobre a vida selvagem local com uma cota permitida para a caça. As comunidades locais poderiam escolher vender sua cota para caçadores de troféus (isto é, a caça de animais selvagens na qual o troféu é o animal ou parte dele) para obter um maior retorno econômico do que vender carne de animais selvagens, como nas unidades de conservação da comunidade da Namíbia.

O sistema de cotas tem seus próprios problemas, entretanto. Lindsey aponta que o gerenciamento de cotas em um ecossistema selvagem, onde as populações são afetadas por condições ecológicas, como secas, é um desafio e requer monitoramento constante.

Claro, os benefícios para as comunidades locais não precisam ser consumistas. O modelo de conservação da comunidade da Namíbia também gera renda de ecoturismo e safáris fotográficos.

“Na Namíbia, nas unidades de conservação da comunidade, há evidências bastante claras de que esses métodos resultaram na recuperação de populações de vida selvagem em algumas áreas”, disse Lindsey.

Em uma pesquisa de 2018 com residentes rurais em 32 das unidades de conservação comunais da Namíbia, 90% disseram estar felizes com a caça aos troféus em áreas de preservação devido aos benefícios que isso gera para as comunidades. Apenas 11% dos entrevistados disseram apoiar a conservação da vida selvagem em terras da comunidade se os benefícios da caça não existissem mais. Uma análise econômica de 77 unidades de conservação da Namíbia, publicada na Conservation Biology, descobriu que a mistura complementar da Namíbia de ecoturismo e caça era crucial para maximizar os retornos para as comunidades locais, e que um foco singular em qualquer uma delas reduziria muito o valor da vida selvagem da Namíbia para a população local.

Na pesquisa de Lindsey sobre gestores de áreas protegidas, a Namíbia notavelmente contraria a tendência com a caça à carne de animais selvagens de baixa preocupação em relação a outras ameaças, incluindo caça ilegal de partes do corpo como marfim, conflito entre o homem e a vida selvagem e as incursões de bois em áreas protegidas.

Iniciativas de base comunitária, como as unidades de conservação da Namíbia, são difíceis de implementar. Elas exigem um grupo comunitário local identificável com propriedade de terra que seja exclusiva e legalmente aplicável – algo que nem sempre existe. A receita gerada por atividades como ecoturismo e caça de troféus também raramente é suficiente para sustentar uma comunidade inteira, ou então os benefícios são distribuídos de forma desigual.

E iniciativas de conservação comunitárias bem-sucedidas como a da Namíbia ainda exigem uma proteção cara.

“Mesmo se você tivesse uma área protegida com a comunidade local ao lado, ainda há um recurso enorme que alguém vai tentar e colher se você não o proteger”, disse Lindsey.

Lidando com a demanda

Em países com comércio de carne de animais selvagens, a evolução da demanda dos consumidores representa um desafio adicional.

Nguluka obteve uma visão detalhada do consumo de carne de animais selvagens na capital da Zâmbia enquanto pesquisava as famílias de Lusaka e entrevistava comerciantes para um estudo financiado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO na sigla em inglês) e pela Panthera, ONG estadunidense voltada para a conservação do grande felino. A equipe de pesquisa estimou que mais de mil toneladas de carne ilegal de animais selvagens são consumidas em Lusaka todos os anos, grande parte dela proveniente dos parques nacionais da Zâmbia.

“Há uma percepção de que a carne de animais selvagens é de melhor qualidade do que os animais de criação, não é bombeada com drogas, é caipira”, disse Nguluka.

Bem como os benefícios para a saúde percebidos, a pesquisa também descobriu que a carne de caça tinha uma qualidade nostálgica para muitos zambianos, lembrando-os de sua juventude e oferecendo a uma população cada vez mais urbanizada uma maneira de permanecer conectada ao seu patrimônio. E, claro, há aqueles que simplesmente preferem o sabor.

O Departamento de Parques Nacionais e Vida Selvagem da Zâmbia (DNPW na sigla em inglês) e a WCP têm lidado com a demanda por carne de animais selvagens de duas maneiras, a primeira por meio de uma campanha de mídia contundente intitulada “This is not a game” (nesse contexto, game é um trocadilho: não significa apenas jogo, mas faz alusão aos animais selvagens que são caçados).

“Chegamos a esse entendimento de que a mudança de comportamento é muito difícil de conseguir”, disse Nguluka. “Você está pedindo às pessoas que desaprendam décadas, senão gerações, de comportamento, então isso vai levar tempo.”

Armado com a sua compreensão das motivações e preferências dos consumidores de carne de animais selvagems em Lusaka, o DNPW encarregou uma conhecida agência criativa zambiana de criar uma campanha de mídia profissional que foi divulgada na televisão, rádio, jornais e mídia social.

“Realmente precisava ser uma campanha para os zambianos, pelos zambianos, falando especificamente sobre as questões zambianas, e acho que conseguimos isso”, disse Nguluka.

A campanha se concentra em três mensagens principais: a carne de animais selvagens é ilegal, é perigosa e carrega doenças. O risco de doença ganhou peso nos últimos meses, desde o surgimento da pandemia global Covid-19, que provavelmente se originou de um morcego.

Cerca de 70% das novas doenças infecciosas são zoonoses que passaram de outros animais para os humanos. Os cientistas acreditam que o surto de SARS em 2003 e a recente crise de ebola na África Ocidental começaram com a transmissão de morcegos.

“Tenho certeza de que sempre houve transmissões e pequenos surtos nas aldeias, mas quando as pessoas morriam [na aldeia], o patógeno não se espalhava”, disse Fabian Leendertz, ecologista de doenças infecciosas do Instituto Robert Koch, em Berlim. “Agora, com a alta conectividade, o patógeno tem oportunidade de ir mais longe e chegar às grandes cidades.”

Leendertz percebeu que a consciência do risco de doenças zoonóticas pode mudar o comportamento.

“Na crise do ebola na África Ocidental, todos os mercados de carne de animais selvagens estavam fechados, ninguém comia carne, você não a encontrava mais em nenhum restaurante”, disse ele.

O freio na caça à carne de animais selvagens teve vida curta, no entanto. Assim que a crise do ebola passou e as proibições temporárias nos países da África Ocidental foram suspensas, a necessidade de proteína acessível mais uma vez superou o risco percebido de doença zoonótica, e os mercados de carne de caça voltaram.

Nguluka disse acreditar que as mensagens sobre o risco de doenças estão chegando às pessoas de renda média e alta, que impulsionam a demanda pela caça ilegal de carne de animais selvagens em Lusaka. A campanha da DNPW usa exemplos locais para passar a mensagem, como um surto de antraz em 2011 na população de hipopótamos ao longo do rio South Luanga. Esse incidente levou a mais de 500 infecções humanas por antraz na região, com pelo menos cinco mortes, depois que a carne de hipopótamo foi consumida.

A segunda parte da campanha é fornecer alternativas para a caça ilegal de animais selvagens na forma de caça legalmente cultivada. Ao contrário da África do Sul e da Namíbia, a Zâmbia não tem um setor bem-sucedido de criação de animais selvagens – um fator que Nguluka diz que exacerbou o comércio ilegal de carne de animais selvagens. A prevalência da carne ilegal de animais selvagens significa que a criação de animais selvagens simplesmente não tem sido lucrativa até agora, e os criadores de animais se concentraram em fontes alternativas de renda, como a caça de troféus.

“Nós vimos uma mudança na política governamental e na retórica em torno da carne de caça legal, um grande impulso para a criação de caça mais legalizada e para que mais indígenas zambianos se envolvam na criação de caça”, disse Nguluka.

O DNPW e a WCP estão ajudando a promover a carne de caça legal e permitindo que os zambianos saibam onde encontrá-la. O acesso não é a única barreira, no entanto. Os comerciantes ilegais de carne de animais selvagens muitas vezes vendem carne a crédito, estabelecendo relacionamentos de longa data com os clientes. Nuances do comércio como essa destacam a necessidade de pesquisas locais específicas para entender o consumo de carne de animais selvagens.

As campanhas de mídia como “This is not a game” não são baratas. A pesquisa original sobre o consumo de carne de animais selvagens de Lusaka logo será repetida, e o DNPW vai descobrir o impacto que sua mensagem teve.

“This is not a game” é incomum ao ter como público-alvo zambianos urbanos, já que outras campanhas de caça a animais selvagens tendem a se concentrar principalmente nas comunidades que caçam.

“As comunidades urbanas têm muito poder e determinam o que está na agenda política”, disse Nguluka. “Por ser um país em desenvolvimento, existem tantas questões urgentes em andamento que [a conservação] não está tão no topo da agenda.”

Em Lusaka, 89% dos inquiridos disseram pensar que a vida selvagem era importante para a Zâmbia, citando os ganhos com as divisas estrangeiras de turistas interessados na vida selvagem. Os preços nos parques nacionais são definidos para aproveitar ao máximo as oportunidades que os turistas estrangeiros trazem, mas isso os torna proibitivamente caros para muitos zambianos.

“Se você não está vendo [os parques nacionais], é muito difícil para você se importar com o que está acontecendo nessas áreas ou ter um contexto”, disse Nguluka. Parte do trabalho dela se concentra em encorajar os jovens zambianos a trabalhar na conservação, criando consciência ao fornecer acesso a histórias para jornalistas, e encorajando os zambianos que podem pagar a visitar os parques nacionais do país.

“Não podemos esperar que eles se importem se não fizerem parte da conversa”, disse ela.

 

 

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